sábado, 2 de agosto de 2008

A eternidade de Loveless

A intimidade de um fã às vezes é mais interessante do que a vida de um mega rock star. Gênio da informática de dia, volta de ônibus para a residência no setor econômico do bairro mais pequeno burguês da cidade (nas suas solenes palavras), coloca uma lasanha congelada no micro-ondas, explode um espumante barato, e se acomoda para mais uma audição de Wagner, que lhe tomará as três ou quatro horas que o seu digno trabalho diurno não lhe roubou. Nos tão aguardados fins de semana, entrega-se à leitura de clássicos da literatura e biografias de maestros, às delícias do sexo pago, e à reflexões misantrópicas em roupa de baixo. Tive a honra de conquistar a simpatia desse ermitão, e ser bem-vindo em seu cativeiro olímpico, desde que levasse a garrafa de espumante. Essa foi minha companhia favorita durante muito tempo, ficávamos horas sem trocar palavra entre sua coleção de vinis, exclusivamente de música clássica e moderna. Mas eis que um dia me deparo com um corpo estranho ali, Loveless do My bloody valentine. Sim, depois de Debussy e Stravinsky, estava lá, com toda altivez de quem encara o sapato, essa pérola dos anos 90.
Levei muito tempo para fazer sentido daquele achado, tão deslocado no discurso sempre coerente daquele velho jovem rabugento. E não foi reconhecendo alguma coisa de seus compositores e maestros favoritos em my bloody valentine, mas apenas me contentando com o fato de que essa banda, especialmente neste disco, criou algo realmente inclassificável, deslocado em qualquer coleção musical, que poderia agradar à qualquer pessoa, excêntrico ou não, provido ou não de gosto ou educação musical.
Se iniciaram um estilo novo foi porque cabisbaixos ali, manipulando uma dúzia de pedais de efeitos, encaravam muito além do aparato no chão, vislumbrando uma dimensão sonora totalmente inexplorada pela psicodelia caricata das três décadas anteriores. A música aqui transcende os instrumentos individuais, como se eles fossem apenas vestígio, de algo que já tomou uma forma mais etérea, e se mesclou numa bruma impressionista. A androginia da voz, e as letras simples e enigmáticas como haikus, fazem da música algo inumano, um oráculo de ruído, a essência barulhenta de um mundo que não precisa de nós para existir.
Fiquei feliz por termos uma opção diferente para ouvir nas nossas tardes de espumante. O disco de duração muito menor parecia parar o tempo. Faixas como touched, de 57 segundos, poderiam durar uma eternidade. E eu nem imaginava que meu amigo em muito breve encontraria uma parceira que o colocaria na linha, e dentro de alguns dias eles se casariam, mudariam de cidade, teriam um filho e nunca mais dariam notícias. O disco permanece.

Um comentário:

Adenilson disse...

esse album pra mim é organico...
sensitivo...
cada vez que ouço...toda audição me leva a um torpor d'alma e de sensações...
Obra de arte sonora !
VOLTARAM à lux , que bom !!!
"all i need" é um desvairo , é a vida em um flash !
"loveless" é o instante eterno.
Grato pelas tuas palavras a esse album !!!
Adenilson