terça-feira, 11 de dezembro de 2012

da necessidade de mais vidas ou se viver mais


(sugere-se ouvir, pacientemente)
Swans - Mother of the World
Passo dias de hospital em hospital. Corredores e corredores brancos, limpos, habitados por homens e mulheres, limpos, de verde e azul. Cordiais. Convencidos de sua importância. Me pego pensando no que passa a paredes dali, em salas de espera e centros cirúrgicos, alas obstétricas e UTIs infantis, enquanto a meu modo sofro o tempo gracejando esperando o ponteiro do relógio girando.

Penso no que vale, no que não vale, quem decide. Temo chegar a certa altura e perceber quão inútil é, que deveria ter feito de outra maneira. Estão errados todos paradigmas, joga-se a vida fora sendo o que se deve. Falo por mim.

Como cão, dividido entre agradar o dono e devorar a carne, minha satisfação repousa em pólos opostos. Uma vida é pouco para fazer tudo preciso. Gostaria de, talvez, três.

Devo viver na neve e conhecer continentes e países. Nadar e desbravar o oceano e um dia nele sumir. Escrever (bem) e tocar algum (qualquer) instrumento pra me sentir (um pouco) melhor. Ter diversos filhos e não criar raízes. Ter amigos e amar vez atrás de vez e ser solitário. Nunca pensar e pensar no que será ou poderia ser. Pedir demissão quando quero e, se quiser, tirar minha roupa na rua. Esquecer compromissos e ser pontual e não me importar. Fazer tudo que se espera e o que tenho vontade e não fazer nada. Ser e não ser e não me importar.

Entretanto, o tempo passa e "somos finos como papel. Existimos por acaso entre as percentagens, temporariamente. E esta é a melhor (e a pior) parte, o fator temporal. E não há nada que se possa fazer sobre isso." Uma morte que se aproxima em nada tranquiliza o coração inquieto. 

Os gatos brincam e o amor acontece em algum lugar todos os dias. E onde brincam gatos e acontece o amor nada pode estar tão errado. "Talvez pensemos demais" e jamais algo indispensável aconteceu por se pensar muito. Soando como lugar comum, sou impelido a concordar com o mal compreendido escritor alemão quando ele diz: "sinta mais, pense menos".
Eu gostaria de três vidas mais. Numa talvez pensasse. Noutra talvez sentisse. Nessa acontecendo certamente ainda não me decidi.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

a despedida d'O Bruto


sob a influência de
Walter Franco: Quem Puxa Aos Seus Não Degenera

No vale perdido entre montanhas perdi alguém esses dias. O dia e mais dias e meses e anos passam rápido e, na ilusão da longevidade, perde-se de vista importâncias insubstituíveis.

O tempo perdido em espera, hora morta suando sob o sol ou em sala com ar condicionado e sorrisos perfunctórios. Nunca nada parece tão importante quanto quando contrastado com a ausência absoluta desse tempo, a morte.

Agora sento numa sala vazia olhando uma garrafa vazia sobre a mesa enquanto espero nada em um hospital gelado e longe. Nada poético, apenas a descrição simples do que faço. Me sinto vazio, sem propósito e pouco ridículo na atividade diária de viver, reclamando do clima, discutindo inutilidade, projetando uma imagem para a platéia insignificante e desinteressada, me perdendo em adjetivo e idéia.

Entre montanhas em um vale perdido perdi alguém que em breve fará parte da paisagem em uma flor e que ainda continua viva em mim e em você e em todo o resto. Um adeus tardio e distante de quem não pôde estar lá para dar o último beijo. 

Eis aqui para todo amigo nunca feito, todo o amor nunca tido, toda palavra nunca dita, todo sentimento nunca expresso a minha tardia aceitação.

sábado, 24 de novembro de 2012

Sábado branco


Sugere-se ler ouvindo: Mount Eerie - Through the Trees

Num sábado branco o céu desenha linhas nos olhos enquanto deito de roupa em minha cama e pondero sobre a possibilidade de vidas em outros lugares. Duas notas ecoam repetidas vezes em meu quarto e preenchem o ambiente, cada canto, escorraçando o silêncio feito câncer.

Tudo permanece imóvel. Os móveis acumulam poeira aos poucos, o cimento cinza dos prédios contra o céu monocromático erode imperceptivelmente e a natureza briga e perde para o calçamento na rua. Roupa dobrada no armário, martelo deixado no chão, a luz de uma lâmpada acesa durante o dia. Vestígios de uma cidade fantasma, habitada. O gato branco se apoia contra a tela na janela ouvindo o canto do pássaro justamente fora de seu alcance.

"Tempo, passado, e mais tempo, e depois um momento..."

Páginas de um livro amarelam, a pele de um rosto que enruga. Segundos valiosos e insignificantes escoam pela fenda no céu. A agulha do toca discos esquecido repete ao infinito a estática da reprodução do silêncio enquanto olhos encaram o papel branco.

Um telefone toca sem resposta até que em algum lugar um movimento involuntário devolve vida ao mundo, que chora como bebê nascido. No decurso do piscar de dois olhos, no correr de sangue numa veia, no brotar da primeira gota vermelha no buraco na carne.

O constante simultâneo infindável inevitável fim e recomeço do que vive e morre feito marcas de dedos em paredes trincadas.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Rugir do Oceano


Essa é a vida que eu vivo e poucas coisas me fazem feliz.
"Vento que sopra pela janela na noite quente de verão iluminada pela Lua. Rua deserta, às vezes molhada pela chuva, às vezes não. O som do mar. O cheiro da árvore de quando eu era criança. A certeza do amor (apesar da incerteza do resto). Alguns amigos. Música. Silêncio. Solidão. Companhia."
Desde minha ilha observo outras ilhas e seus habitantes. Suas luzes que brilham, suas vidas vividas lentamente, perturbadas pela insignificância que, secretamente, abraçam e tratam docemente, perto do coração, como animal de estimação. Que dorme em suas camas, sob suas cobertas, dentro de seus peitos, aquecida por seus pijamas e ambições nascidas mortas.

Ilhas separadas por profundidades, aproximando-se com lentidão continental, cercadas por águas de  mistérios. Erguem-se e ruem pontes em cerimônias ruidosas e, ao fim, recolhem-se na escuridão, acendendo luzes artificiais para sinalizarem que estão lá. Existem.

Que tarefa: existir.
"Dirigir até o fim da cidade, além da linha de trem. Na estrada, à noite, apagar os faróis. Lembrar de ver, nos campos que zuniam na escuridão, vaga-lumes. Numa reta, fechar os olhos por alguns segundos, deslocando-se muito, muito rápido. Ver as luzes alaranjadas dos postes no outro extremo da cidade refletidos no asfalto chovido. Muitas vezes com amigos. Muitas vezes sozinho. Rituais de despedida. O abrir de mãos. Amigos vivos. Amigos mortos. Amigos que nunca viveram."
Ilha, existo em minhas lembranças, onde sinto-me livre para fantasiar e atuar a peça elaborada de uma vida toda para a platéia de um homem só. "Quanto talento. Quanto desperdício." - Se você apenas soubesse.

Olho furos na parede, penteando com os dedos os pêlos que crescem de meu rosto. Trago estampado no peito a marca do fracasso mais espetacular de todos e nada da cintura pra baixo.

Li "viver é desenhar sem borracha". Minha vida, desenho com a ponta dos dedos das mãos e dos pés numa margem qualquer que será inundada ao subir da maré. Li "fôrma sem forma, sombra sem cor, força paralisada, gesto sem vigor". Uma música ecoa em meu crânio vazio, crânio empalhado. Guitarra que ruge subsônica, tambor que rufa o fim do Tempo e mais uma vez me lembro do poeta dizer "assim expira o mundo, não com uma explosão, mas com um suspiro".

Manco, apoiado em ombros fortes.
"Adeus. Até jamais. Solo maldito. Sol escaldante. Ar sufocante. Gente gente. Um quarto azul e amplo repleto de mentiras e desequilibrio. "Meu trigésimo ano rumo ao céu". "[…] a verdadeira alegria da criança há tanto tempo morta cantava […]". Realizações nas madrugadas. Aventuras à margem do rio. Ao pé da montanha. Uma foto. Uma música. "Esses eram os bosques e o rio e o mar ali onde um menino à escuta do verão dos mortos sussurrava a verdade de seu êxtase". Verdade só há enquanto criança."
O Pássaro canta. Equivocado, anuncia um amanhecer que não virá. O disco gira no fim. Silêncio e dois cliques. Os furos continuam na parede, simétricos. Os pêlos imperceptivelmente maiores em meu rosto. O resto, igual.

Ilhas, escuridão, calor, cimento e luzes e almas artificiais.





-recomenda-se ler e ouvir-
Mount Eerie - I Walked Home Beholding
do disco: Ocean Roar (2012)

quarta-feira, 20 de junho de 2012

o canto do cisne




(recomenda-se leitura acompanhada de:)
Swans - Little Mouth
(My Father Will Guide Me Up a Rope to the Sky)

Tudo começou na despedida. Já na porta de casa senti que fazia o que era certo: sair para uns dias longe de tudo, com motivos reais e motivações, ulteriores, ainda mais prementes. A conversa com o taxista no longo trajeto até o avião me deixava ainda mais contente de estar, por alguns dias, abandonando o Inferno. Filhos mortos pelos pais, amantes esquartejados e traições fascinantes me convenciam de que eu fazia a Coisa Certa. Precisava respirar.

Pouco depois entrei na máquina. Um avião velho, com hélices. Parti para o meio do nada. De um lado, a janela e a hélice girando nem tão veloz quanto se imaginaria, o azul do céu a perder de vista e montanhas… montanhas e montanhas. Do outro, pessoas simplórias, interioranas, meio acanhadas, nada ingênuas, tampouco boas, apenas simples. Duas garotas de programa iam de avião visitar a família em algum ponto perdido do país naquele fim de semana.

Com saudade dos gatos, tentava me animar contemplando a perspectiva dos dias que viriam, longe de uns problemas, perto de outros, na companhia de quem, não duvido, me ama, apesar de demonstrar de forma trôpega.

E ir para o meio do nada raramente é simples, após duas horas de vôo, fui forçado a mais duas horas de espera por um ônibus de beirada de estrada para me levar, após mais duas horas, ao meu destino real.

Quando enfim cheguei, já era noite. Caminhei da rodoviária até casa. Passei por onde morei toda minha vida e jurei poder ver o fantasma da minha juventude ainda pairando por ali, na água da fonte. Continuei caminhando, piegas, ouvindo minha música, pensando onde é que tudo foi dar um pouco errado, em que momento eu fui abandonar o que eu queria por uma ilusão de que eu poderia ser qualquer outra coisa que não aquilo que sempre quis.

Quando vi o avião na ida não tive tanta certeza de que queria aquela aventura. Quando vi a máquina pronta para voltar, dias depois, tive a mesma sensação. No breve tempo que passei longe, me senti cercado de amor de verdade e senti que lá o tempo não passa, não pra mim. Voltei agora e me sento em casa escrevendo isso, tomando fôlego pra fazer o que me parece certo… torcendo para que eu possa discernir o que é certo do que é errado e que eu seja forte para não me importar caso esteja errado. Mais uma vez.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

'I just want a bit part in your life'


Acho que toda vida é marcada por uma espécie de sorte furtiva. Algumas vezes, ao longo desses 30 e poucos anos, vivi momentos que, mesmo enquanto aconteciam, eu sabia que estariam para sempre marcados nas minhas lembranças.
Eu morava numa cidade de interior de Minas Gerais onde muita coisa nunca aconteceu, e, adolescente, começava a desvendar alguns segredos da vida e do futuro. Mancava pelo que costuma se chamar 'crescer' e nada teria sido tão incrível sem alguns acontecimentos quase aleatórios, como a descoberta de músicas para uma vida toda desde cedo e a de um Amigo para a vida toda desde então. Por um desses acontecimentos imprevisíveis fui presenteado com um quase primo, mais que amigo, verdadeiro irmão. Contra tudo e contra todos nos tornamos, mesmo vivendo a vida distantes, os melhores amigos, daqueles de filmes nostálgicos e melancólicos em VHS velho esquecido no fundo do armário.
No verão de 93 me diverti como poucas vezes. O calor era insuportável, como sempre, e, entre devaneios nada frugais, perdíamos a maior parte de nossos dias. Toda vez que ouço It's A Shame About Ray lembro de não acordar por não ter dormido numa manhã ensolarada de sábado. Dois inconsequentes à beirada da piscina fantasiando sobre o futuro e a vida e proferindo ingenuidades de uma vida imaginada sob influência da privação de sono.
Alheios ao fato, os Lemonheads eram a trilha sonora de meus ensaios rebeldes, o mote de meus sonhos extravagantes de adolescente, o resumo de minha juventude desperdiçada. Enquanto eles tocavam consolidava-se o fim de minhas fantasias juvenis. Eu lutava para remover de mim o que restava ainda de criança e tornar-me pronto para os emocionantes e, acima de tudo, frustrantes anos que seriam minha adolescência.
Com timing perfeito, caso falássemos sobre futuras viagens, prováveis aventuras, possíveis amores ou simplesmente em continuarmos amigos pra sempre, It's A Shame About Ray, não menos inocentemente, cantava suas pérolas de juventude pequeno burguesa suburbana.
Naquela época, não havia internet, não havia mp3, não havia download e, pra nós, no interior de lugar algum, não havia nem mesmo MTV. Toda música atravessava nosso caminho sem querer, era simples sorte que ditava o que você ouviria e foi ela, a sorte, que colocou esse disco em minha vitrola para nunca mais sair. Enquanto escrevo sinto o cheiro de dias passados, o calor daquele sol à beira daquela piscina, a sensação de que jamais morreria, de que eu havia nascido para feitos grandiosos, a felicidade que só se sente nessa idade e que pra sempre vira nostalgia.
Os contos de amor de Dando são meus. São minhas também as tristezas dos amigos perdidos. Faço minhas suas melodias implacáveis, e são só meus os murmúrios que ouve-se junto de cada uma de suas músicas. Mais que tudo, são minhas as lembranças de uma vida inteira sob a influência dessa força, dessa nostalgia que, pra mim, é It's a Shame About Ray, a trilha sonora irrepreensível do que fui então e do que imaginava que seria hoje.


Lemonheads - Confetti
(do disco It's a Shame About Ray)


Lemonheads - Bit Part
(do disco It's a Shame About Ray - vídeo não oficial)


Lemoneahds - Rudderless
(do disco It's a Shame About Ray - vídeo não oficial)



Lemonheads - It's a Shame About Ray











01 - Rockin' Stroll
02 - Confetti
03 - It's a Shame About Ray
04 - Rudderless
05 - Buddy
06 - The Turnpike Down
07 - Bit Part
08 - Alison's Starting to Happen
09 - Hanna & Gabi
10 - Kitchen
11 - Ceiling Fan in My Spoon
12 - Frank Mills
13 - Mrs. Robinson


Discografia:
Hate Your Friends (1987) * * *
Creator (1988) * * *
Lick (1988) * * * *
Lovely (1990) * * * *
It's a Shame About Ray (1992) * * * * * √
Come on Feel the Lemonheads (1993) * * * *
Car Button Cloth (1996) * * * * *
The Lemonheads (2006) * * * *

√ - (Volume 11 pick)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Músicas de uma vida inteira - Flying Saucer Attack


De repente, o que começa como um simples relar das cordas, uma melodia tímida, explode em agitação... calma, ensolarada, confortável, aconchegante, como a de um bebê dentro da barriga.
Memórias distantes de minha distante cidade natal brotam todas as vezes que o refrão canta "my dreaming, dreaming hill…". A forma da Pedra, as falhas geometricamente perfeitas que estimulavam a imaginação infantil, suas efêmeras cachoeiras em temporadas de chuva, sua imponência...
Uma voz surge por entre camadas de distorção e reverberações, macia, profunda e, morosa, canta palavras difíceis de discernir. Soterrada pelo turbilhão sonoro de guitarras, poucas palavras monótonas são compreensíveis, o suficiente para fazer de olhos abertos sonhar com paisagens distantes, pitorescas, retiradas da sua, da minha infância, e transformada em música.
Não qualquer música... música sublime... registro familiar gravado, esquecido, de sua própria voz quando criança. Músicas que suscitam visões entorpecedoras, como as que se observa pela janela do carro quando, menino, viajando no banco de trás com seus pais no que pareciam férias que durariam a vida toda. Infindáveis plantações, campos, montanhas, bosques e florestas imperscrutáveis, tornados ainda mais instigantes pela imaginação, assim como as palavras na música.
E dizem que isso é só música.
Quanto mais se ouve, mais a beleza quase adormecida de uma vida sonhada, quase rural, construída com minúscia pela imaginação, vai mudando para outros tons, outros ares, ângulos novos. Apenas a sensação, o sentimento, permanece, através de tudo, imutável. Cada vez essa canção soa mais como retornar a um lugar tão familiar, hoje esquecido. Soa como recordações, soa como o renascimento de uma felicidade inocente, como inevitável nostalgia.
Música, quando é assim, transcende o limite os ouvidos. Vai direto à alma.

Suncatcher
(do disco Mirror)



Tides
(do disco Mirror)



Flying Saucer Attack - Flying Saucer Attack












01 - My Dreaming Hill
02 - A Silent Tide
03 - Moonset
04 - Make Me Dream
05 - Wish
06 - Popol Vuh I
07 - The Drowners
08 - Still
09 - Popol Vuh II
10 - The Season is Ours


Discografia:

Flying Saucer Attack (1991) * * * * * √
Further (1995) * * * * * √
Distant Station (1996) * * *
Goodbye/And Goodbye/Whole Day (1997) * * * *
New Lands (1997) * * * *
Mirror (2000) * * * * * √

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

days of being wild


Imagine: o deserto sem fim, calor, escorpiões, areia movediça, pegadas frescas de leopardos, ossos, cabeças e chifres de animais mortos por todos os lados. Você está sozinho e observa à distância um nativo caminhando e percebe que presencia uma cena que se repete há séculos da mesma forma e, nesse dia, como a centenas de anos atrás, tudo está igual, a única diferença é você ali, testemunhando a vida na sua forma mais simples e interferindo com a inóspita e dura harmonia da paisagem.

Assim como meses antes eu me perdia em caminhadas pela neve no frio polar, dessa vez eu desbravava um dos maiores desertos de todos e sentia pesando em mim a obrigação de registrar em detalhes paisagens que certamente ninguém fora daquela tribo tinha jamais percebido.

Quando o Sol se punha, antes da noite cair, o céu se coloria surpreendentemente, cores bem distintas do cinza nefasto que consigo vejo agora entre os totens de concreto das cercanias. À noite, constelações que nem mesmo se imagina brilham no horizonte que não tem mais fim e, se você tem sorte, estará em companhia de um nativo que contará histórias nas estrelas e te ensinará a não se perder no deserto, se guiando apenas por elas. Com sorte você não se esquecerá jamais disso.

Havia dias, eu caminhava sozinho por essa imensidão, me sabendo cercado por toda sorte de coisas que ameaçariam a vida. Havia dias que eu saia acompanhado por um nativo que me levava pelas mãos por lugares que eu não deveria me aventurar sem companhia. Observar um lugar como esse, sem propriedades, sem proprietários, sem a má mão civilizada, no continente que deu início à tudo isso que chamam de vida é, por definição, libertador.

Eu, como sempre, me impregnava de música em todos os momentos que podia e, muito embora muitas vezes a música apenas servisse para criar um contraste intenso com tudo que me cercava, ela me lembrava quem eu era, de onde eu vinha. Me lembrava que, ali, eu não era quem eu sou aqui. Que eu lá era tão estranho, com minhas tatuagens, quanto tudo aquilo me era único e precioso.

Me lembro de mais de uma noite insone por culpa dos cães e das hienas, noites nas quais eu ficava deitado em minha tenda, em meu catre, vendo com uma lanterna as formigas que entravam pelas frestas e temendo mais escorpiões sob minha cama, ouvindo Cult of Luna na escuridão fria do deserto. A profundidade e escuridão da noite africana, perdido no meio de lugar algum, entre tribos e nativos, de alguma maneira, tudo se conectava e, no teto da minha tenda, acordado, eu projetava sonhos e resquícios do dia com a trilha sonora densa e profunda de Echoes, Vague Illusions, Finland e, sob influência do medicamento para malária, quando por fim dormia, tinha pesadelos monumentais.

O que eu vi, o que me foi dado de presente, nesse mês com os nativos, é indescritível. Minhas concepções a cerca do que é a vida, do que se precisa para ser feliz, do que é SER feliz jamais serão as mesmas. Nunca conheci pessoas mais livres, felizes, de corações tão bons e puros que aquelas. Guardei muita bondade e beleza de cada um deles em meu coração. Eles não serão apenas nomes na última página amarelada do meu caderno de anotações, mas sim, para sempre, ícones de liberdade, alegria, plenitude... mesmo que tenham constantemente desaprovado meu gosto musical.

Cult of Luna - Finland

Cult of Luna - Echoes