quinta-feira, 19 de abril de 2012

'I just want a bit part in your life'


Acho que toda vida é marcada por uma espécie de sorte furtiva. Algumas vezes, ao longo desses 30 e poucos anos, vivi momentos que, mesmo enquanto aconteciam, eu sabia que estariam para sempre marcados nas minhas lembranças.
Eu morava numa cidade de interior de Minas Gerais onde muita coisa nunca aconteceu, e, adolescente, começava a desvendar alguns segredos da vida e do futuro. Mancava pelo que costuma se chamar 'crescer' e nada teria sido tão incrível sem alguns acontecimentos quase aleatórios, como a descoberta de músicas para uma vida toda desde cedo e a de um Amigo para a vida toda desde então. Por um desses acontecimentos imprevisíveis fui presenteado com um quase primo, mais que amigo, verdadeiro irmão. Contra tudo e contra todos nos tornamos, mesmo vivendo a vida distantes, os melhores amigos, daqueles de filmes nostálgicos e melancólicos em VHS velho esquecido no fundo do armário.
No verão de 93 me diverti como poucas vezes. O calor era insuportável, como sempre, e, entre devaneios nada frugais, perdíamos a maior parte de nossos dias. Toda vez que ouço It's A Shame About Ray lembro de não acordar por não ter dormido numa manhã ensolarada de sábado. Dois inconsequentes à beirada da piscina fantasiando sobre o futuro e a vida e proferindo ingenuidades de uma vida imaginada sob influência da privação de sono.
Alheios ao fato, os Lemonheads eram a trilha sonora de meus ensaios rebeldes, o mote de meus sonhos extravagantes de adolescente, o resumo de minha juventude desperdiçada. Enquanto eles tocavam consolidava-se o fim de minhas fantasias juvenis. Eu lutava para remover de mim o que restava ainda de criança e tornar-me pronto para os emocionantes e, acima de tudo, frustrantes anos que seriam minha adolescência.
Com timing perfeito, caso falássemos sobre futuras viagens, prováveis aventuras, possíveis amores ou simplesmente em continuarmos amigos pra sempre, It's A Shame About Ray, não menos inocentemente, cantava suas pérolas de juventude pequeno burguesa suburbana.
Naquela época, não havia internet, não havia mp3, não havia download e, pra nós, no interior de lugar algum, não havia nem mesmo MTV. Toda música atravessava nosso caminho sem querer, era simples sorte que ditava o que você ouviria e foi ela, a sorte, que colocou esse disco em minha vitrola para nunca mais sair. Enquanto escrevo sinto o cheiro de dias passados, o calor daquele sol à beira daquela piscina, a sensação de que jamais morreria, de que eu havia nascido para feitos grandiosos, a felicidade que só se sente nessa idade e que pra sempre vira nostalgia.
Os contos de amor de Dando são meus. São minhas também as tristezas dos amigos perdidos. Faço minhas suas melodias implacáveis, e são só meus os murmúrios que ouve-se junto de cada uma de suas músicas. Mais que tudo, são minhas as lembranças de uma vida inteira sob a influência dessa força, dessa nostalgia que, pra mim, é It's a Shame About Ray, a trilha sonora irrepreensível do que fui então e do que imaginava que seria hoje.


Lemonheads - Confetti
(do disco It's a Shame About Ray)


Lemonheads - Bit Part
(do disco It's a Shame About Ray - vídeo não oficial)


Lemoneahds - Rudderless
(do disco It's a Shame About Ray - vídeo não oficial)



Lemonheads - It's a Shame About Ray











01 - Rockin' Stroll
02 - Confetti
03 - It's a Shame About Ray
04 - Rudderless
05 - Buddy
06 - The Turnpike Down
07 - Bit Part
08 - Alison's Starting to Happen
09 - Hanna & Gabi
10 - Kitchen
11 - Ceiling Fan in My Spoon
12 - Frank Mills
13 - Mrs. Robinson


Discografia:
Hate Your Friends (1987) * * *
Creator (1988) * * *
Lick (1988) * * * *
Lovely (1990) * * * *
It's a Shame About Ray (1992) * * * * * √
Come on Feel the Lemonheads (1993) * * * *
Car Button Cloth (1996) * * * * *
The Lemonheads (2006) * * * *

√ - (Volume 11 pick)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Músicas de uma vida inteira - Flying Saucer Attack


De repente, o que começa como um simples relar das cordas, uma melodia tímida, explode em agitação... calma, ensolarada, confortável, aconchegante, como a de um bebê dentro da barriga.
Memórias distantes de minha distante cidade natal brotam todas as vezes que o refrão canta "my dreaming, dreaming hill…". A forma da Pedra, as falhas geometricamente perfeitas que estimulavam a imaginação infantil, suas efêmeras cachoeiras em temporadas de chuva, sua imponência...
Uma voz surge por entre camadas de distorção e reverberações, macia, profunda e, morosa, canta palavras difíceis de discernir. Soterrada pelo turbilhão sonoro de guitarras, poucas palavras monótonas são compreensíveis, o suficiente para fazer de olhos abertos sonhar com paisagens distantes, pitorescas, retiradas da sua, da minha infância, e transformada em música.
Não qualquer música... música sublime... registro familiar gravado, esquecido, de sua própria voz quando criança. Músicas que suscitam visões entorpecedoras, como as que se observa pela janela do carro quando, menino, viajando no banco de trás com seus pais no que pareciam férias que durariam a vida toda. Infindáveis plantações, campos, montanhas, bosques e florestas imperscrutáveis, tornados ainda mais instigantes pela imaginação, assim como as palavras na música.
E dizem que isso é só música.
Quanto mais se ouve, mais a beleza quase adormecida de uma vida sonhada, quase rural, construída com minúscia pela imaginação, vai mudando para outros tons, outros ares, ângulos novos. Apenas a sensação, o sentimento, permanece, através de tudo, imutável. Cada vez essa canção soa mais como retornar a um lugar tão familiar, hoje esquecido. Soa como recordações, soa como o renascimento de uma felicidade inocente, como inevitável nostalgia.
Música, quando é assim, transcende o limite os ouvidos. Vai direto à alma.

Suncatcher
(do disco Mirror)



Tides
(do disco Mirror)



Flying Saucer Attack - Flying Saucer Attack












01 - My Dreaming Hill
02 - A Silent Tide
03 - Moonset
04 - Make Me Dream
05 - Wish
06 - Popol Vuh I
07 - The Drowners
08 - Still
09 - Popol Vuh II
10 - The Season is Ours


Discografia:

Flying Saucer Attack (1991) * * * * * √
Further (1995) * * * * * √
Distant Station (1996) * * *
Goodbye/And Goodbye/Whole Day (1997) * * * *
New Lands (1997) * * * *
Mirror (2000) * * * * * √