segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A morte de um pai


The death of your father, the death of your mother
Is something you prepare for
All your life
All their life


Eu não fui ao enterro do meu pai. Quando recebi a notícia de sua doença ainda sentia o peso dos quase 30 anos de animosidade e aversão que houve entre nós durante toda a vida. Passam a infância inteira te contando histórias e fábulas sobre mágicos que fazem coisas fantásticas e inacreditáveis usando palavras mágicas, mas, na verdade, a única palavra mágica é Câncer.

Foi essa palavra que me fez esquecer, por alguns dias, os maltratos, à mim, aos meus irmãos, à minha mãe. Foi ela que me fez ignorar os anos e anos e décadas de desprezo mútuo. Foi essa palavra que me fez escavar a memória em busca dos pouquíssimos momentos bons que vivi com quem deveria ter sido meu pai, que me fez lembrar de suas piadas vendo comerciais de TV, de jogar River Raid com ele, de levar um tapa na boca aos 3 anos de idade por chamá-lo de algo que eu certamente nem sabia o que era. De, escondido com um amigo, vê-lo dançando bêbado sozinho na boate no aniversário de quinze anos da minha irmã. Me fez lembrar do seu tombo incrível jogando futebol de sapato social e calça branca, de suas mentiras impressionantes e todas as vezes que ele havia capturado uma onça com um galho de árvore. Me fez lembrar dele de short de índio, camisa social pra dentro, meia fina e tênis Rainha me chamando pra ir ao mecânico num sábado à tarde. Dele dançando bêbado e pelado Age of Aquarius na sala do apartamento ou de sua versão peculiar de Help! dos Beatles.

Foi ao ouvir "Câncer" que eu senti um ímpeto de me desculpar com ele por tudo que houve entre nós. Coloquei, erroneamente, sobre minhas costas o peso de todos os problemas que tivemos. Foi só então que eu percebi que o que me falaram a vida toda era um pouco verdade: que pai é pai, apesar de tudo, e que é um só.

Ainda bem.

Uma vez eu disse a ele: "Você vai morrer sozinho, sem ninguém." Ele me respondeu com um dar de ombros, como quem diz: "E daí?" E eu disse: "Mas eu vou ao seu enterro, eu vou carregar seu caixão". "Não precisa, não quero". "Faço questão, com um sorriso daqui, àqui, te coloco no chão e vou embora".

Mas eu não fui ao seu enterro. Outra vez, pela última vez, a vontade dele prevaleceu. Passei a vida o considerando um estranho, os últimos quatro anos ou mais sem falar com ele ou mesmo vê-lo, então por que vê-lo num caixão e ter como essa a última lembrança de meu pai, foi o que pensei.

A verdadeira última lembrança de meu pai é ele me dizendo: "Vou entrar porque só de vir aqui abrir o portão parece que eu tô bêbado", uma sensação que ele conhecia bem. Aí eu o abracei despedindo, disse que o amava, a maior mentira sincera que já contei. Ele entrou e, enquanto o resto da minha família se despedia, eu o vi pela janela pegando, na sala da casa, seu maço de cigarros, sua garrafa de água e ir cambaleando pra dentro da casa tateando a parede enquanto o Câncer destruia seu cérebro, de bermuda e camisa velha, esgarçada na gola. Uma imagem que contrasta com a lembrança que eu tenho dele da minha infância... de sapato social, calça branca, camisa de botão, alto e sempre uma ameaça.

Que sejam essas minhas lembranças. Lembranças de um homem que sempre considerei o melhor exemplo de como não ser. Lembranças minhas, de coisas que vivi sozinho, coisas que vi porque observei, não porque ele era uma atração mórbida em um caixão, com todos os olhos, lacrimosos ou não, vendo a mesma coisa, seus 66 anos de histórias, verdadeiras e falsas, principalmente falsas, se encerrando ali, nos seus últimos tristes e solitários minutos na superfície da terra.

Que as lembranças desse dia fiquem com os outros, com meus primos e tios, com meus avós, que sofreram a primeira perda de um filho, mas que não sejam as minhas. Eu sou egoísta e o pai é meu, me lembrarei dele da forma que eu quiser e eu pra sempre vou lembrar dele vivo, sadio, forte e desagradável.

Se eu pudesse voltar àquele último minuto que passei com meu pai, além de dizer que o amava, eu pediria também desculpas. Desculpas por nunca ter sido um filho melhor, um filho de verdade. Eu espero que ele tenha refletido sobre toda a vida dele em seus últimos meses, semanas, dias, noite, dia e minutos de vida e que ele tenha percebido tudo que ele fez de errado, e como toda sua solidão era sua própria e inegável culpa. Era sua a culpa de tudo que fiz ou deixei de fazer... eu sei que eu o desculpei por alguns minutos naqueles dias. Me arrependo um pouco por não ter dito.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

meu tempo na Montanha


Me lembro bem. Fiz a mala não com o que queria, mas com o que precisava, que seria útil. Subi a pedra, fui pro chalé antigo, longe da cidade. Via de lá apenas mato, árvores imensas, envoltas em cipós e neblina. Na natureza, no meio de tantas árvores, a noite chega cedo. Pela janela do quarto o horizonte vai até onde o olho enxerga, ou até onde a névoa permite.

O fogão à lenha força, além de pensar com antecedência, a ter madeira cortada. As noites frias são preenchidas pelos ruídos que cercam e fantasmas do passado. Fantasmas não arrastam correntes, não mudam coisas de lugar, apenas sopram frases mal digeridas no ouvido, distraindo a atenção das vozes que cantam nos headphones.

As primeiras semanas são difíceis, exigem adaptação, paciência e, sobretudo, sanidade. No isolamento da montanha enterrei meus amigos, mortos e vivos. Ignorei família, isolei-me voluntariamente. Durante dias o único som que ouvi vinham do bosque, de meus passos discretos e descalços no chão de madeira velha, além dos sussurros dos fantasmas.

As noites trazem vinho e tudo que, convenientemente, se tem à mão. Vezes e vezes, nas madrugadas, cansado do monólogo das vozes nos ouvidos, respondia em voz alta revivendo cenas desastrosas. Quando alterado, quebrava garrafas contra a pedra, planejava, no frio da escuridão, atear fogo à cidade e todos lá pra aquecer as mãos lá em cima.

A barba cresceu e nunca se foi, joguei fora o par de sapatos e, descalço e sem camisa, nem me importava. Tentei em vão escapar dos fantasmas e de meu próprio coração velho. Subi a montanha um mas, quando desci, era outro, porém eu mesmo.


Mount Eerie - Moon Sequel

Mount Eerie - With My Hands Out

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Da saudade e outros lobos...




Ouça: Smog - Rock Bottom Riser

Me olho enquanto dou adeus e viro as costas e saio rumo a casa. Me vejo atando nó na garganta e desfazendo um no coração. Sei das lágrimas que caíram e sei das que não, sobretudo, sei guardar as minhas. Sinto o peso em minhas costas.

Me olho despedindo novamente de tudo em rituais solenes e inúteis. Me vejo dando adeus às árvores, espelho, montanha e rio. Longe, aprendo a viver longe de quem amo, enganando minha alma e inventando hierarquias de amor absolutamente estapafúrdias. Olho humilhado os pássaros em vôo e vejo minha casa sumindo, preenchida por tristeza e saudade.

Me olho no escuro arrependido, sem escolha, correndo de braços meio abertos e olhos completamente fechados em direção ao vazio. Me vejo numa alcatéia de lobos negros, formas no escuro que me acompanham por toda parte  e não permitem que eu esqueça quem eu sou, de onde eu vim, pra onde eu vou e sinto o peso das escolhas e o corte na carne pra cada um dos dias que não tenho mais junto do meu sangue.

Me olho incapaz de escapar das minhas escolhas e me entrego à sorte, furtiva, forçando a certeza de que faço meu melhor. Me vejo mergulhando o lago sem fundo dos dias e mais dias e outros dias buscando por ouro, não achando, perdendo o ar.

Olho aqueles que deixo para trás e nunca sei como me portar. Me vejo tropeçando nos próprios pés e caindo cada vez mais longe. Gostaria que soubessem o quanto os amo. Acho que nunca disse. Me olho e me vejo arrependido no meio de lugar nenhum cercado pela noite e silhuetas distantes. Amo muito cada um de vocês, carne e sangue.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

"do you really think there's anybody out there?"



(escute: Lower Dens - Rosie)

Sendo assim, voltou à cidade onde viveu tanto tempo e dirigiu pelas mesmas ruas vendo os mesmos rostos mais velhos ou rostos diferentes. Passou pela frente da casa onde alguém algum dia morou e lembrou da vez que dormiram e acordaram no quarto dos pais e, lado a lado, provavelmente, tiveram o mesmo sonho, já que todo mundo ali sempre sonha o mesmo sonho, dormindo ou acordado.

E lá, olhando a casa, sentiu-se sozinho.

Na cidade pequena onde cresceu subiu a pedra e, junto a árvores e antenas, esperou pela noite de inverno. Sentado no chão agarrando folhas segurava a mão do planeta e de mais ninguém. Quando finalmente a noite caiu sobre a montanha, era o sol distante, rebatido numa bola de rocha brilhante flutuando no espaço, que iluminava o relevo com luz azul e silêncio. E na solidão da altitude olhava as luzes da cidade distante abaixo hesitantes. Apesar de só, sentiu-se acompanhado e quis, com alguém, dormir sob a luz da lua, sob os galhos das árvores, sobre a montanha azul.

E no carro, voltando para casa, sentiu-se sozinho.

Como a Lua, seu peito estava cheio e na escuridão do vale repousava suas costas em camas macias demais e ouvia morcegos que voavam muito próximos. Entre paredes e corpos nus a única certeza era da morte algum dia e do retorno inevitável ao mundo real, ao trabalho, às garotas, diferentes, às frivolidades, idênticas. Sendo assim, mais um mês rumo ao infinito se arrastava no exercício fútil de existir e respirar. Um mês atrás havia saído de casa procurando esquecer, voltava agora com novas lembranças.

E vendo a paisagem que corria pela janela, como de costume, sentiu-se sozinho, porém feliz.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Também cresce?



(leia ouvindo)
Little  Wings - I Grow Too

Memória muscular guia pelas ruas da cidade. Mesmo que não saiba mais os nomes, ainda conhece os caminhos. Mesmo que não reconheça os rostos, lembra das vidas. Passam casas, praças, bares. O fantasma da juventude não tão distante paira sobre a água do rio, o pico da montanha, espreita em esquinas escuras, flutua acima da copa das árvores, uma mão aberta, outra cerrada, um sorriso indeciso sussurando no rosto, no peito, a vergonha de todos os erros em exibição constante para quem quiser ver. 
"pneus cantam, metal retorce, pessoas desaparecem. vivas ou mortas, enterradas. o sol se levanta pela janela no quarto dos fundos. roupas dispostas em cima de uma cama. malas vazias, corações pesados. um copo com água esquecido ao lado de um cigarro ainda aceso queimando sozinho na cozinha na madrugada. abraços vazios, mãos que apertam a si mesmas. o gosto amargo da boca dos outros."
A cidade é outra, a bebida a mesma, e nos bares as conversas não mudam, as mesmas histórias reverberam pelas paredes até morrerem sob as rodas de um carro qualquer guiado rápido demais por alguém nem diferente nem igual a ninguém. O brindar de copos, os olhares furtivos para as coxas das mulheres, às vezes novas demais, às vezes não. Nenhum traço de novidade que faça o coração bater. O fantasma da juventude agora pouco mais distante paira nos balcões, mesas, flutua, murmura palavras ininteligíveis de salvação, mãos abertas, no peito sangrando a marca ainda recente de unhas e dentes.
"notícias chegam por telefone, cada toque, falha no coração uma batida de coração. a emboscada da vida. a armadilha da velhice aguarda de molas armadas. dedos ansiosos reviram cinzas. faróis acendem, trazem a realidade, espantam sonho e noite. em toda calçada, esquina qualquer, lixo cresce e vento sopra o que resta. ratos disputam migalhas. sangue nos olhos."
Um mar de bocas, pés, mãos, braços, cabeças. A música alta demais, a luz que oscila devolve o benefício ignorado do silêncio e inexatidão a todos, que, aos berros, se exibem no mesmo esconderijo embaraçosamente super exposto de sempre. Na graça inexistente, na classe ausente está a impossibilidade dos corpos, e os copos circulam, as vozes aumentam. Olhos e mãos se confundem em suas funções e a vergonha é tomada por garrafa vazia, lançada ao chão, despedaçada. O fantasma da juventude para sempre esquecida vaga por entre corpos, copos, paredes e portas, de mãos para trás, olha por olhos cansados, pensa pensamentos pesados, não oferece, não exige coisa alguma. No peito, o lobo negro chamado Nada.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

It's not meant to be a strife...



(para acompanhar a leitura)
Harvey Milk - One of Us Cannot Be Wrong

A noite corre em enganos e embaraços, frases pela metade, covardia e falta de coragem acelerando respirações e induzindo ao erro vexatório. Na escuridão ao redor, insinuações jocosas, elogios funcionais e, mais uma vez, a hipócrita procura pelo que se teme, se evita. A bebida que anula o julgamento é a mesma à qual se recorre (posteriormente) para aguçá-lo, em vão. Olhares e toques casuais tomados por desejo e pensamento, pedaços de carne sem vontade se roçam no espaço por falta de sorte ou por atração doentia e reprimida. Há quem clama amor, há quem dê amor, mas não há quem saiba recebê-lo, a breve história do zeitgeist. Carícias em costas indiferentes.

Num canto qualquer, amores alcalinos nascem e morrem. Roupas transparentes revelam tudo o que se tem para mostrar, e nada além disso, enquanto braços cruzados desenham no ar, na luz que cerca, a clara falta de entrega e amor que pixações demagogas reproduzidas pelas paredes da cidade exigem. No barulho de copos que brindam, de pessoas que riem e da música que toca, oculta-se o pudor desmedido e o medo de corações abertos, corações entregues, corações famintos feito lobos negros. Amenidades insípidas tomadas por vislumbres de vida, tudo tão vazio, tão cheio de nada, o grande trompe l'âme humano em exibição nos olhares impostores dos falsos amantes. Cantos de bocas que se roçam em despedidas permanentes.

O sol do inverno refletindo na piscina e a ilusão de liberdade queimando no peito. Entre garrafas verdes e mergulhos corajosos dilui-se a impressão de que tudo é sem sentido. A sensação de eternidade descansa à sombra das palmeiras plantadas em concreto e a música abraça tudo em seu caminho. Risadas e apertos de mãos e planos pro futuro é tudo que se precisa e tudo que se tem. A frieza de contas pagas e aventuras sexuais tomadas pela experiência real do amor. Garrafas que voam e segredos que se contam constroem uma definição contemporânea de amizade. O rádio toca alheio e a vida continua, simples e caótica na mesma medida. O sol se põe, mas amanhã nascerá novamente.